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Recomeçamos do método

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por Commonware - trad. Uninômade

1. Derrotar o pensamento da derrota: eis a primeira tarefa política deste momento. O que é o pensamento da derrota? É assumir a impossibilidade de transformar o estado presente de coisas, é aceitar um papel marginal, hastear uma bandeira branca sobre os fatos mesmo que isto seja feito agitando-se uma bandeira vermelha.

O pensamento da derrota pode assumir duas formas, opostas e especulares: de um lado, a guetificação no testemunho identitário, do outro, o oportunismo que diz “chega de perder”, para a seguir pular no colo dos vencedores, ou de quem se diz tal. A ordem dos fatores não altera o produto: a impotência. Em círculo vicioso, essa impotência vira uma justificativa para os seus próprios rituais vazios de ação, ou então para o benefício pessoal desfrutado graças a vínculos institucionais. Quando, ademais, isto se traduz em tietagem de candidatos exóticos, catalogados por prefixos numéricos como nas listas telefônicas, ou ainda no enésimo anúncio da “nova esquerda, desta vez a verdadeira”, é porque a farsa definitivamente nos fez esquecer a tragédia. Em suma, há uma paradoxal convergência entre a prática da “micropolítica” e a aspiração à “macropolítica”, isto é, uma dialética entre ilhazinhas marginais e marginalidade institucional.

Ambas as tendências, em qualquer caso, coincidem em descarregar a responsabilidade pelas próprias escolhas sobre a composição social: afinal que outra coisa se poderia fazer nesta situação senão refugiar-se em nossos pequenos espaços ou perseguir quimeras institucionais? Disso temos um entre tantos exemplos dos últimos meses na Europa, o exemplo dos refugiados, ao redor do que a política institucional se distribui entre uma direita neoliberal, fiel à necessidade de fazer circular a força trabalho a fim de aumentar a estratificação da chantagem e da exploração, e uma direita protofascista, que erige muros e joga gasolina na guerra entre pobres e empobrecidos. De um lado, está então quem recua para uma opção frentista, para o menos pior que no fundo não passa da defesa do status quo, isto é, de nosso verdadeiro inimigo; de outro, quem se asila numa opção humanitária, na exaltação da condição de vítima, terminando por ficar subordinado à opinião pública democrática e à igreja católica. Entre outras coisas, na própria aceitação do termo “refugiado” já se faz uma concessão ao léxico da governance, que usa essa categoria como instrumento de divisão entre os imigrantes. Em suma, do ponto de vista das lutas, nada nunca se construiu com lágrimas: todos no Facebook se comovem com a foto do menino Aylan, para depois consolarem-se nos aperitivos. Na vontade de choro a esquerda prospera, porque precisa de vitimização e inferiorização social para reproduzir a sua própria função enquanto pretensos representantes das vítimas. Eis o nome do pensamento da derrota: se chama esquerda. Nós devemos ir noutra direção porque não somos de esquerda. Porque o contrário de esquerda não é direita, mas revolução.

2. Já o dissemos e repetimos: as insuficiências são antes de qualquer coisa nossas, e não da composição de classe. Este “nós”, aqui genericamente entendido, se repousa languidamente sobre o já conhecido, sobre isto que já temos, exaltando-o como a única coisa que podemos ter. Assim, reproduzindo a si próprio, é possível insistir numa leitura escolástica da composição técnica, esperando a explosão conflitiva dos sujeitos identificados como objetivamente centrais. Ou então se pode renunciar às articulações da composição de classe, buscando as lutas quando ocorram e a opinião pública quando não. Mas nem os apóstolos da ideologia nem os turistas dos movimentos dos outros servem de grande coisa para enfrentar o pensamento da derrota, ao contrário, integram-no.

O ponto, de método, é que a análise da composição de classe é primeiramente análise dos comportamentos subjetivos que a inervam. Ante os centros de gravidade no processo de acumulação capitalista, bem como à possibilidade de golpear o patrão coletivo onde dói mais, devem corresponder comportamentos potencialmente conflitivos, de irresignação, de recusa. Posicionamentos e comportamentos constituem a relação em que se baseia a composição política de classe: ignorando um dos dois termos se termina por escorregar numa objetividade pressuposta, ou mesmo num mal-entendido subjetivismo. A seguir, tem quem use a dureza do primeiro termo para justificar a falta do segundo: se diz, por exemplo, que diversas figuras do precariado cognitivo não lutam porque estão submetidas a uma chantagem estrutural, esquecendo que a chantagem é o fundamento da relação de exploração e barganha da força trabalho. E, entretanto, se os precários são fracos não é caso de ter-lhes pena, nem muito menos repreendê-los por isso. O nosso papel, de fato, não se confunde com o do opressor: aquele se constitui em vez disso por quem se rebela diante das condições da opressão.

Daí o problema seja onde olhar: muitos dos lugares a que olhamos até agora, aqueles em que tudo parece mais simples, se revelam inadequados ou em todo modo insuficientes. Devemos ir lá onde está o desconhecido, ou mais precisamente, um desconhecido potencialmente produtivo de conflito. Mover-se in partibus infidelium, porque as terras dos crentes são bastante áridas. Se a expressão “sujar as mãos” é inadequada para expressar essa tarefa, encontremos outra. Se a palavra “pesquisa” foi abusada demais, e certamente o foi, chamemo-lo “estilo de militância”, que é feito de pesquisa e construção de projeto.

3. Peguemos dois exemplos, muito diversos entre si: o movimento francês e a luta dos poupadores golpeados pela operação salva-bancos [NE: pequenos e médios poupadores italianos que ficaram a ver navios quando alguns bancos decretaram falência]. No primeiro caso, a nossa atenção — estranha a qualquer ideia grotesca de uma importação linear — desde logo se concentrou sobre um sujeito de minoria, ou seja, os jovens e muito jovens, bem como os secundaristas. Não é a componente numericamente mais significativa, mas os números só são decisivos para o espetáculo democrático, não necessariamente para o desenvolvimento das lutas. Dentro da pluralidade tradicional das figuras que se mobilizam na França contra a Loi Travail [NE. desmantelamento de direitos trabalhistas], pluralidade cuja ativação constitui indubitavelmente uma das condições de possibilidade da extensão do movimento, a fração jovem é uma fração particular e diferente. A lei é para ela um pretexto, uma ocasião para tomar as praças e a cidade. Quanto às outras figuras não há nada a defender, e estamos livre de vínculos.

É a fração — com todas as óbvias especificidades do contexto francês — que definimos precários de segunda geração, figuras que não se sentem expropriadas do futuro porque dele jamais ouviram falar. Daqui a peculiar ambivalência, a de viver entre as tensões niilistas e a possibilidade de uma radicalização autônoma que rompa definitivamente com qualquer relação com as estruturas de representação, externa ou interna ao movimento. Na emergência conflitiva desses sujeitos de minoria, vemos a possibilidade de uma tendência potente das formas de antagonismo contemporâneas.

O exemplo dos poupadores contra a operação salva-bancos é extremamente útil para afirmar uma coisa simples: não está escrito nalguma essência da natureza que a classe média empobrecida deva fechar-se numa depressão suicida ou então filiar-se à demagogia da direita. O processo de subjetivação que se deu entre muitos poupadores, a partir de 22 de novembro, dia do bail-in, foi de qualidade e intensidade extraordinárias.

Primeiro, souberam quebrar a retórica governamental e midiática dos presumidos especuladores, mostrando que eles se tratam exatamente de famílias de classe média e, em vários casos, de operários que confiaram aos bancos a poupança de uma vida toda de trabalho, tentando garantir para si um futuro que, agora, foi perdido. Segundo, souberam identificar com precisão os inimigos, a começar pelo Partido Democrático (PD), e escaparam da ratoeira de serem etiquetados como enganados: o engano é sistemático e não individual, logo, ou se põe em discussão o sistema que continuamente o produz ou então dele não se sairá. Desse modo, a quebra da confiança nos bancos e, mais em geral, nas instituições se tornou um novo princípio de possibilidade e organização coletiva. Eles foram chamados “vítimas do salva-bancos”, mas são vítimas apenas no nome e não nos fatos. Antes, nos próprios fatos inverteram o papel que lhes foi consignado como vítimas.

A pergunta é: porque dentro dos âmbitos de “movimento”, tão pouca atenção, tão aberta indiferença, ou mesmo franca hostilidade tem sido reservada às mobilizações dos poupadores? A sua relevância e sua intervenção política consequente cobrem, segundo nós, uma tendência de médio e longo prazo, bem além dos quatro bancos que faliram. Talvez porque não sejam vítimas, porque não respondam aos imaginários esquerdistas da vitimização, porque sejam figuras carregadas de uma ambiguidade social potencialmente produtiva para as lutas e, no entanto, urticante se o objetivo for confortar-se de nossas próprias queridinhas identidades. O problema, ao contrário, não é assumir um lado no campo do jogo da guerra entre pobres e empobrecidos: esse campo deve ser destruído, porque foi montado pelo inimigo, pelas duas equipes que o ocupam e nele disputam, isto é, Salvini de um lado, e Renzi do outro. Não admira que no último decreto miserável, o governo busque jogar, sem contudo consegui-lo, com a distinção entre pobres e empobrecidos como critério para a indenização.

Fique claro: para evitar equívocos maliciosos, estas considerações não se dirigem a promover uma pesquisa ofegante por um sujeito central. E, todavia, existem centralidades. A variável geracional da composição de classe constitui um aspecto politicamente decisivo, enquanto dentro da questão da poupança se condensa uma rótula estratégica: o welfare familiar, que na Itália é realmente o único welfare existente. Com a poupança, quem trabalhou busca construir uma terceira idade segura. Os precários de primeira geração a utilizam para navegar no mar da incerteza, enquanto os precários de segunda geração roem-lhe os nacos, nem tanto visando a um futuro desaparecido, mas pelo menos para prolongar o presente. Dentro das contradições deste eterno presente, se joga tendencialmente a possibilidade de uma contraposição que construa novas perspectivas autônomas.

4. Romano Alquati nos contava que nos anos 50 do século passado havia se criado um círculo vicioso: o Partido Comunista Italiano (PCI), que tinha decidido abandonar as fábricas, perguntava aos próprios quadros se nelas sucedia ainda alguma coisa de relevante; os quadros operários respondiam que não, que nada acontecia, reforçando assim as escolhas do partido. Aí as coisas se encaminharam como sabemos: quem pensa que à época tudo era mais simples, é um tolo que tenta justificar as próprias insuficiências com uma ideia mal-entendida de complexidade. Fique claro: não queremos traçar paralelismos históricos inúteis, porque as situações sociais e políticas se produzem através de concatenações específicas. O que nos interessa evidenciar é, aqui, um dado de método. Se não virmos nada na composição social, a primeira pergunta que devemos colocar se refere aonde olhamos e se as nossas lentes são adequadas.

Não se pode, de fato, dizer que este momento esteja pacificado. Ao contrário, tantas coisas nele acontecem e de modo turbulento. O problema está em que, quanto a isso, “nós” temos sido em boa medida marginais. Não sairemos da marginalidade enquanto não mudarmos a direção do olhar. O “povo de esquerda” é hoje um povo derrotado, que fez da derrota uma forma de vida, do oportunismo uma prática, do testemunho identitário uma escapatória falaciosa. Essas lentes precisam ser destruídas, porque ofuscam a nossa vista. Hoje temos a impressão que, dentro da explosão da classe média, e de tudo que isto implica (classe média em crise de mediação, escrevia Alquati), a partida seja jogada em boa medida ao redor daqueles pedaços de composição que, hoje, olham ou poderiam olhar o Movimento 5-Stelle ou, na hipótese pior, a Liga. Goste-se ou não, ou invertemos as coisas, ou não haverá sequer jogo. Deste ponto de vista, a investida dos poupadores nos mostra como os processos de subjetivação estão vivos, numa direção ou na outra, dentro da aceleração produzida pela crise.

Então, derrotar o pensamento da derrota significa romper com a aceitação do existente. A aceitação de uma vida comandada pela relação social capitalista, a aceitação de nós próprios enquanto encarnação dessa relação social, de nossa impotência política, a aceitação de uma identidade às margens — das instituições ou da metrópole. O contrário do pensamento da derrota não é o pensamento dos vencedores, mas o pensamento revolucionário. Contra as retóricas sobre a fase de merda que estamos atravessando, dizemos que este é o tempo da aposta, porque um pensamento revolucionário não dá bola para a quantidade imediata, mas para a qualidade da tendência.

E como sabemos bem, as tendências são sempre obscuras quando se busca antecipá-las, claras somente em retrospectiva. Quem sabe se daqui a 50 anos o militante historiador, olhando as lutas futuras ou as explosões dos anos 10 e 20 do terceiro milênio, não dirá: bah, claro, é tão simples, como não se poderiam vê-las?