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Na crise pelo espelho

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por COMMONWARE

Enquanto as lutas explodem nos BRIC (Brasil-Rússia-Índia-China), vale colocarmos uma questão, ou melhor, uma questão que a Comuna de Gezi e o Movimento Passe Livre (MPL) no Brasil colocaam. Em primeiro lugar, apresentam a oportunidade de, mais uma vez, criticar a reaparição contínua de imagens termidorianas da atual fase, tentando fechar e interromper o fluxo de revoltas e tumultos.

Tendo chegado já ao sexto ano de crise, que, em dado momento, havíamos definido como global e permanente, é como se, para muitos tivesse sido decretada não somente a insuficiência dos movimentos, mas o seu destino como fracasso e inconsistência. Neste caso, a escolha pela saída da rua ou pelo contorno dos movimentos pouco conta se é para fazê-lo “em frente” ou “para trás”, pouco conta se ditada pela ingênua boa fé ou por cálculos oportunistas da melhor estratégia. Em qualquer caso, o resultado para os que assim procedem é idêntico: esquivar-se do confronto com os desdobramentos e pontos de bloqueio e impasse, isto é, com os nós reais das lutas no lugar em que ocorrem, ou seja, evitam enfrentar a dificuldade que essas lutas têm ao emergir e conectar-se entre si.

“Mas em Itália não existem lutas!”, recita a opinião vulgar, dentro e fora do movimento. É talvez a mesma coisa que teriam dito companheiros em Istambul ou no Rio de Janeiro, há alguns meses; para não falar dos Estados Unidos, antes do Occupy, ou na Tunísia e Egito, antes da maré revolucionária que virou de ponta-cabeça o norte da África. Seriam os companheiros excessivamente cuidadosos ou, quem sabe, — hoje podemos dizer — teriam falhado em levar em conta as genealogias mais ou menos profundas, que constituem a espinha dorsal indispensável das insurgências? A nós, não interessa consultar a cabala ou montar uma banca de apostas sobre as revoltas globais: a nossa tarefa, mais sóbria e em definitivo mais engajada, é tentar identificar e interpretar as tendências, elaborar hipóteses políticas, e apostar em composições diferentes de elementos que já existam ou, em modo caótico, estejam se formando.

No aludido escopo, as lutas nos interrogam questões de fundo: primeiramente, é possível indicar um paradigma comum aos movimentos na crise? Não estamos obviamente falando de algum impensável quadro unitário e homogêneo, mas de elementos comuns que permitam colocar sobre um plano de comunicação e tradução imediatas as diferentes lutas. Se tal paradigma é traçável, de que modo o que aconteceu na Turquia e no Brasil o afetam? Os materiais de análise e reflexão que apresentamos na abertura de nossa cartografia das lutas na crise oferecem, nessa direção, contribuições importantes.

Paradigmas em movimento

Já faz um tempo, estamos empenhados em revisitar criticamente a categoria tradicional de “ciclo [de lutas]“. Percebemos o uso difícil da categoria na apreensão das crises econômicas: quando se sucediam, em ritmo vertiginoso e acelerado, separadas por poucos anos, quando tendiam a espalhar e alongar-se sobre o funcionamento financeiro normal, a ponto de tornarem-se permanentes, quando procedem de bolha em bolha, segundo a dinâmica definida “boom bust”, — em todos esses casos, como seria possível ainda usar, ainda com menos razão com seu significado originário, a categoria de “ciclo”?

Paralelamente, e em relação aos eventos econômicos, começamos hoje a repensar os “ciclos de lutas”. Devemos levar em conta a reconfiguração radical das formas de poder, a explosão das coordenadas tradicionais da divisão internacional do trabalho, o desmoronamento da representação e do estado como medidas das relações de força, e ainda a necessidade das lutas se disporem sobre um plano imediatamente constituinte; tudo isso nos leva a avançar além da definição tradicional de ciclo. Sem embargo disso, é talvez possível falar em um “ciclo da subjetividade”, isto é, de um espaço e um tempo comuns que se formam e geram efeitos. São as subjetividades das lutas na crise que parecem, de fato, compartilhar traços característicos: 1) a composição social e de classe, 2) a dispensa ou, pelo menos, o despegamento da representação, 3) os principais espaços de vida e ação, quer dizer, a rede e a cidade, 4) certas práticas de luta (por exemplo, a ocupação de praças e lugares da cidade), não somente exprimindo um ataque ao “privado”, mas também uma relação sucessivamente mais problemática com o “público” concretamente existente. E compartilham, ao mesmo tempo, os principais problemas, e antes de qualquer outro o da duração, de como fazer a explosão durar. Para dizê-lo em termos decerto não inéditos: como lidar com a dificuldade de unir a ação destituinte (amiúde extraordinariamente incisiva, como se deu na deposição dos regimes da Tunísia e Egito) com a não menos importante iniciativa constituinte? O plano extensivo e horizontal das mobilizações, a sua difusão capilar, e a capacidade de multiplicar-se, precisa ser combinado com um plano intensivo e vertical, a ponto de modificar, e de maneira não apenas contingente, as relações de produção e poder.

No entanto, se não quisermos abandonar completamente uma análise baseada em ciclos, que se resuma a flutuar entre a euforia pelas revoltas (em particular, a dos outros) e a depressão pela fase de refluxo (que serve para justificar as saídas e esquivas mencionadas acima), podemos experimentar adotar seriamente as indicações de Michael Hardt. Portanto, o caso é enxergar a produção de subjetividade, não para achar conforto na existência útil dos conflitos simplesmente porque existam, mas sim, porque é antes de tudo nesse nível — o da produção de subjetividade, exatamente, e sua capacidade de constituir-se de modo comum — que se singularizam as riquezas e os limites das lutas na crise.

Não há lugar aqui para otimismo e leituras conciliatórias: o que está acontecendo nesta semana no Egito restitui o drama da fase que vivemos. Mas não se podem separar os riscos inquietantes da reação, da possibilidade concreta que os movimentos na crise continuamente produzem: frequentemente a reação é extremamente dura, mas devemos calá-la dentro do movimento, porque não há fora. E, de dentro, veremos como a partida está em aberto.

De resto, vimos como gatilhos contingentes — a defesa de um parque em Istambul, o aumento das passagens e a Copa das Confederações, no Brasil — provocaram lutas gerais. Isto significa que não são casuais, mas capazes de mobilizar e unir genealogias profundas e forças aparentemente invisíveis, mas jamais ausentes. Como se apreende dos materiais reunidos no site Commonware, os movimentos nos BRIC (incluindo aí a Turquia), estão diante de um elemento novo e de grande importância: as lutas tomam corpo no interior de contextos que não são de recessão, mas, ao contrário, de expansão econômica.

Escrever “global” para adjetivar a crise significa evidentemente perceber nela uma diferenciação profunda e intrínseca. Pode-se falar, com maior complexidade, da crise permanente do desenvolvimento capitalista, do esgotamento de suas promessas de progresso social. Se, na Europa e nos Estados Unidos, tal crise assume de maneira paradigmática a fisionomia do rebaixamento e da precarização da classe média, os companheiros de Istambul e de Rio nos dizem coisa diversa. A classe média, de fato, na função política de mediação que historicamente exerceu, na Turquia é parte integrante do bloco de poder, enquanto no Brasil a “nova classe média” nunca existiu, ou melhor, nasce já desclassificada e precarizada. Constitui-se, desde a origem, como proletariado cognitivo.

As composições das lutas na Europa e América do Norte e nos BRIC — os sujeitos no centro das reflexões de Neetwork — nos fazem ver uma espécie de mundo pelo espelho: de um lado, emergem os precários de segunda geração, socializados do começo ao fim numa situação permanente de crise, rebaixamento e sucateamento das capacidades cognitivas que, — diferentemente de seus pais — de um futuro não tiveram nunca sequer a notícia; de outro lado, os jovens protagonistas dos movimentos na Turquia e sobretudo no Brasil — nos explicam os companheiros — cresceram na promessa de uma sociedade em expansão, especificamente na América Latina, numa difícil transição a uma sociedade pós-neoliberal. Esses são os sujeitos de uma transição inconclusa, como corretamente sublinha Hardt.

Não admira que, dentro dessas lutas nos BRIC, a alternativa ilusória entre o “público” e o “privado” quase não se apareça. O “público” já privatizado é para muitos o inimigo principal. O sonho de uma sociedade capitalista pós-neoliberal aqui se converte, para uma geração inteira, no símbolo de uma força intelectual e criativa ascendente, mas continuamente constrangida nos limites da exploração. Todavia, na dissolução do ciclo econômico clássico, o mundo do espelho produz lutas comuns, unificadas pela separação definitiva entre desenvolvimento capitalista e progresso social, isto é, pelo ataque permanente à potência coletiva gerada dentro, e em excesso, desse desenvolvimento. A comensurabilidade é, assim, construída pelas lutas: são os movimentos que constituem um plano global. Neste quadro, — para dizê-lo com Bifo (Franco Berardi) — o problema está em conduzir as lutas ao plano estratégico da autonomia do trabalho cognitivo. Eis o nó a desatar e a questão a ser desenvolvida.

O espaço das lutas

No “ciclo”, temos neste momento um problema de lugares e espaços. Devemos, isto é, por um lado, dar conta da questão: no momento em que a metrópole se torna produtiva, quais são os lugares dos conflitos e de condensação de valor, onde é possível fazer mal aos patrões? Por outro lado: depois da crise do estado-nação, quais são os espaços políticos em que o plano global pode ser agitado, a fim de alavancar uma transformação radical? Hoje, possivelmente, existam lutas que fazem mal aos patrões, mas ainda não geraram espaços de recomposição. É uma questão que nos propomos enfrentar noutra seção do site, a partir das hipóteses ilustradas por Simona de Simoni.

Fixemos agora alguns apontamentos estenográficos, ou melhor, interrogações sobre o entrecruzamento dos espaços transnacionais.

Desde muito tempo, identificamos a Europa como plano para a ação, a possível “alavanca”, o “termo médio”, a meio caminho entre o espaço nacional em vias de esgotamento e o espaço global efervescente. Continuamos a pensá-la e simultaneamente queremos evitar repetir, como um mantra, as hipóteses que se arriscam hoje a já nascer velhas. Não as evitamos absolutamente, como se estivessem erradas em princípio, mas simplesmente porque passou o tempo em que tais hipóteses, dessa forma, poderiam ser politicamente fecundas. Nesse meio tempo, adverte Christian Marazzi, a Europa virou um monstro.

À prova de equívocos, se por acaso eles nunca fossem necessários: não estamos absolutamente pensando em dar um passo atrás, quer dizer, em retornar ao espaço nacional esvaziado e restrito, como foco das análises e lutas. Pelo contrário: para lutar adequadamente contra qualquer tentação neossoberanista (de que nos aparecem sempre muitos exemplos, sobretudo no norte da Europa), é indispensável reformular as hipóteses que nos condicionam. Noutras palavras, não podemos continuar a evocar a Europa ideal fazendo pouco caso da Europa real, sob pena de cair numa posição de mera testemunha dos acontecimentos. O tema da Europa nos movimentos é pouco presente, ou de todo ausente, disso não há dúvida: mas em vez de rotulá-lo como nacionalista ou contaminado pelo soberanismo, devemos remontar-lhe os motivos. Não para comprazer-se deles, mas para trabalhar com eles e transformá-los.

Assim, coloca-se o problema do nível de ação da crítica da Europa real e da moeda única, contrariando tanto o recuo reacionário quanto o soberanista. Se o nível nacional é, de fato, um espaço esvaziado para a transformação, o nível europeu não está simplesmente preenchido; ele está, sim, construído por completo sobre novas coordenadas. Esta crítica pode acontecer talvez a partir de suas fraturas internas — a mediterrânea, para começar, onde voltam a rufar tambores de guerras nunca terminadas —, para revirar as iniciativas políticas transnacionais. Nessa direção, as indicações que vêm de Marazzi são de importância fundamental: devemos determinar os objetivos pelos quais declinar concretamente a práxis da transformação. Hoje, um discurso sobre a Europa, seguindo ainda Christian, não pode senão começar pela determinação de espaços e elementos do comum — ou seja, não de mapas institucionais, mas sim da cartografia da subjetividade, de sua forma de vida e de luta.

Na renovação do plano imediatamente transnacional de ação política, devemos também dar conta das dificuldades na construção de redes europeias. Ao longo dos anos, fizemos muitas tentativas (em campanhas ou em setores subjetivos, por exemplo: os imigrantes, os precários, os estudantes), todas às vezes nos deparamos com o problema da duração. Podemos constatar a falência das agregações formadas ao redor de momentos singulares, apontando mais à reproposição dos contrapontos “no global”, do que à experimentação de outras formas, mais adequadas a este ciclo. Por outro lado, dentro desse espaço em construção, é necessário pensar também uma nova temporalidade para os processos organizativos de rede. Esta não pode limitar-se aos eventos de conflito e explosão, para dissolver subitamente depois dos eventos; não pode ainda, porém, viajar num ritmo que dependa da continuidade dos lugares, isto é, mediante redes radicadas no território. As várias tentativas, com efeito, deixaram sedimentos, traços e relações políticas, decerto insuficientes para configurar uma nova forma de organização transnacional, mas de modo algum inúteis para manter em aberto a urgência de sua pesquisa. Em síntese, não é preciso a cada vez recomeçar do zero, na tarefa de criar alguma coisa de necessariamente inédito, e adequado aos sujeitos potencialmente emergentes. O problema principal é exatamente compreender sobre quais níveis e através de quais a potência pode se tornar espaço de generalização das lutas.

Enfim, para começar

Concluímos abrindo outro problema, que no fundo muitos compreendem. O novo projeto de Commonware quer, na realidade, programaticamente, investigar os nós inconclusos, as hipóteses a corrigir e repensar, as engrenagens conceituais que se arriscam a girar em falso. Sustentamos muitas vezes que a crise da representação, sobretudo para a nova geração na composição de classe, é estranha à esquerda. Por caridade, nada impede de continuar a usar o significante “esquerda”, na esperança de que um novo significado ou princípio volte a preenchê-la da possibilidade de emancipação. Tememos contudo que essa estrada não vá longe, e ao menos não nos candidatamos simplesmente a exercer o papel de choradeiras para uma história terminada. Não podemos, com certeza, contentar-nos com a afirmação de que haja essa estranheza, se não conseguirmos, a nosso passo, dar conta plenamente das consequências, em termos de perspectivas, práticas, discursos. Por exemplo, talvez hoje possamos dizer — usando um “nós” bem amplo, e coincidente com o espectro de movimentos e mesmo suas representações “de esquerda”, precisamente — de ter vez em quando um pouco de fedor debaixo do nariz a respeito de humores e comportamentos, certamente inquietantes e profundamente ambíguos, sobre temas como a corrupção ou a meritocracia.

Fique claro: não temos nenhuma simpatia por discursos contra a casta de quem aqueles humores representam: reivindicamos antes a justiça teórica e política de uma ofensiva radical à demagogia meritocrática. E foi correto identificar nesses discursos o léxico do poder e da mistificação: como se o futuro aos precários tivesse sido roubado por corruptos sozinhos, e não por um sistema que produz a corrupção, e como se fossem a magistratura e a prisão a poder restituir o malfeito e restaurar um sistema mitológico — e aterrorizador — onde vale o princípio “a cada um segundo seu próprio mérito”. No entanto, nutrimos, por outro lado, pouca simpatia por um desprezo difuso elitista ao lidar com as “massas”, que não permita colher a ambivalência — real embora problemática — daqueles humores e comportamentos. Jogando assim o menino (a classe contra uma vida de merda) junto com a água podre, isto é, o discurso meritocrático. Para chegar ao fundo, dentro desses humores ambíguos, encontramos, com efeito, o negativo, os caroços materiais dos processos de movimento — a crise da representação, a precariedade permanente, a ausência de perspectiva, a decomposição e a banalização do conhecimento. Já faz tempo seguimos repetindo, mas temos dificuldade em conduzir a consequências práticas: as lutas na crise são inevitavelmente espúrias, e provavelmente sempre o serão. O fã das revoltas dos outros deveria pelo menos saber que o celebrado “que se vayan todos” argentino nasceu de uma coagulação de humores e comportamentos não dissimilares daqueles mencionados acima. De positivo, o plano constituinte não pertence à pureza cristalina da subjetividade, que nunca houve nem haverá, mas sim à capacidade das composições de classe capazes de conferir a si próprias formas organizativas novas.

 

* Tradução por Bruno Cava – UniNômade Brasil.